quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Painéis da Associação Académica de Coimbra - João Abel Manta

O complexo composto pelos edifícios da Associação Académica de Coimbra e Teatro Académico Gil Vicente, da autoria de Alberto José Pessoa (1919-1985) e João Abel Manta (n.1928), marca uma ruptura formal com a linguagem arquitectónica de monumentalidade totalitária utilizada na cidade universitária de Coimbra, obra paradigmática do programa arquitectónico do Estado Novo.
Situado no sopé da colina, entre as chamadas "escadas monumentais" e a Praça da República, este complexo concebido no final da década de 50, recupera a escala humana na articulação dos vários corpos que o compõem com os espaços ajardinados e os arruamentos circundantes.
A proposta vem do arquitecto que havia sido responsável pela concepção da Faculdade de Letras (1945-1951) e pela reconversão do edifico da nova Biblioteca Geral, inaugurado em 1962, sob a supervisão de Cristino da Silva (1896-1976), ambos integrados no plano inicial de Cottinelli Telmo (1897-1948). O traçado austero e classicizante, bem como a escala megalómana, destes edifícios não fazia  prever o projecto subsequente.
O conjunto de edificações da AAC e TAGV desenvolve-se segundo novos critérios, já previstos pelas propostas modernistas e agora  postos em prática pelo chamado Estilo Internacional. 
A eliminação do conceito de fachada principal, criando múltiplas possibilidades de leitura do edifício, leva João Abel Manta a desenhar um conjunto de painéis de azulejo, tratando temas relacionados com as actividades académicas, a serem colocados no exterior das edificações.
Nestas obras, o autor faz uso das suas capacidades de síntese formal, desenvolvendo uma linguagem gráfica sofisticada em que explora superfícies de cor plana em articulação com  várias espessuras de linha, traçada em cores de diferentes intensidades.
João Abel Manta, com formação em arquitectura pela Escola de Belas Artes de Lisboa, desenvolvia já intensa actividade como artista gráfico, desenhando capas para livros e ilustrações para várias publicações. 
Esta prática, que acabou por ficar sobretudo marcada pela actividade cartoonista no pós 25 de Abril, imprime uma linguagem verdadeiramente moderna aos cartões para os painéis cerâmicos de sua autoria a serem executados pela fábrica Viúva Lamego durante a transição da década 50 para 60. 


João Abel Manta - capa de livro (1960). frenesi



João Abel Manta, O Ornitóptero, tinta da china sobre papel (1960). CAM-JAP



João Abel Manta, da série Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar.


Para além das questões formais, as propostas de João Abel Manta para os painéis da ACC constituem um entendimento conceptual inovador no contexto nacional, uma vez que a escolha dos temas e a sua abordagem valoriza a mudança e o carácter interventivo das actividades culturais estudantis, ao invés de glorificar ou mitificar o passado, apanágio das intervenções artísticas habitualmente patrocinadas pelo Estado Novo, como é verificável na cidade universitária.
A subtil inclusão de uma crítica à passividade imposta pelo regime, virá mais tarde a ser legitimada pelos protestos estudantis da década de 60, fazendo já adivinhar a obra que o autor vem a desenvolver durante o período revolucionário.



Vista aérea dos edifícios da AAC e do TAGV. © CMP

Para a realização dos painéis assentes na fachada virada para a Av. Sá da Bandeira  (localização assinalada a laranja na vista aérea acima reproduzida), o autor dividiu a  superfície longilínea que tinha à sua disposição em sete painéis com dez metros quadrados cada. 
O contrato foi celebrado em Julho de 1960 tendo os cartões sido aprovados de imediato pela Junta Nacional de Educação. O assentamento das peças decorreu provavelmente em Maio de 1961. 
O tema inicial previsto pelos arquitectos para estes painéis  seria as "actividades desportivas académicas" mas acabou por ser alterado, passando a versar os trajes académicos do século XIV ao século XX, em várias cenas organizadas sequencialmente. 
Embora este fosse um tema cordato e consensual, ligado às tradições coimbrãs, João Abel Manta trata-o não pela via da perpetuação dos costumes, mas sim dando privilégio à sua mudança.
A paleta cromática deste conjunto azulejar articula-se perfeitamente com a cantaria e os restantes revestimentos cerâmicos do edifício, integrando-se sem criar qualquer tipo de contraste. As tonalidades ocres conferem uma sobriedade à fachada certamente responsável, a par com o tema, pela imediata aprovação da Junta Nacional de Educação.



Vista parcial da fachada, Av. Sá da Bandeira. Flickr

Vista parcial da fachada virada para a Av. Sá da Bandeira. © CMP

Vista parcial da fachada virada para a Av. Sá da Bandeira. © CMP

Painel representando o traje académico no Séc. XV. © CMP

Detalhe do painel representativo do traje académico no Séc. XV. © CMP

Painel representando o traje académico no Séc. XVII. © CMP

Painel representando o traje académico no Séc. XVIII. Flickr


Painel representando o traje académico no Séc. XIX. Flickr


Painel representando o traje académico no Séc. XX. Flickr

Em Janeiro de 1959, João Abel Manta e Alberto José Pessoa apresentam a memória descritiva do painel que deveria figurar, no bloco das cantinas, na fachada virada para a Rua Oliveira Matos (assinalada a verde na vista aérea acima reproduzida)
Este painel, desenvolve a temática das "actividades culturais da Associação Académica": "o cinema, a rádio e a fotografia, o orfeão e grupos corais, a imprensa e leitura, as danças regionais e o teatro académico". 
A paleta de tons cerúleos, apesar de recuperar as tonalidades da tradição azulejar portuguesa, não foi argumento suficiente para evitar o parecer negativo da Junta Nacional de Educação, alegando que a localização da obra poria em causa a "monumentalidade e a sobriedade da escadaria do conjunto arquitectural da entrada da cidade universitária", propondo assim  o   assentamento do painel no interior do edifício. 
A obra vê-se relegada para o jardim (localização assinalada a azul na vista aérea acima reproduzida) onde ainda se encontra actualmente. 
Como pode observar-se nas imagens abaixo, os jardins da ACC  carecem de limpeza e conservação, sendo apenas frequentados pela comunidade estudantil,  não será portanto esta a localização ideal para uma obra deste tipo.
Para além de não ter sido concebido para o espaço em que se encontra, o painel vê a sua capacidade interventiva completamente anulada, uma vez que a generalidade dos habitantes da cidade desconhece totalmente a sua existência
Seria tempo de lhe devolver o destino previsto, contando com a supervisão do seu autor ainda em vida. Certamente a cidade teria a surpresa e o prazer de desfrutar desta "nova"  intervenção artística.


Entrada da ACC virada para a escadaria monumental, na confluência da Rua Oliveira Matos com a Rua Castro Matoso.


Vista geral do painel no jardim. © CMP


Secção representando o cinema, a fotografia e a rádio. © CMP


Detalhe da representação do cinema e da fotografia. © CMP


Detalhe da representação do cinema e da fotografia. © CMP


Secção representando o orfeão e grupos corais. © CMP


Detalhe da representação do cinema e da rádio. © CMP


Detalhe da representação do cinema e da rádio. © CMP


Secção representando a imprensa e a leitura. © CMP


Secção representando a leitura e as danças regionais. © CMP

Detalhe da representação das danças regionais. © CMP


Detalhe da representação das danças regionais. © CMP


Secção representando as danças regionais e o teatro académico. © CMP

Detalhe da representação do teatro académico. © CMP

Detalhe da representação do teatro académico. © CMP



Identificação da fábrica e datação. © CMP


Vista geral do painel e envolvente.© CMP


Os revestimentos cerâmicos são usados em vários detalhes nos edifícios da AAC, tanto no exterior como nos interiores, pequenos ladrilhos vidrados a branco aplicados em pilares adossados e faixas horizontais em tijoleira desvidrada.


Detalhe do revestimento cerâmico do bloco das cantinas. © CMP


Detalhe do revestimento cerâmico do bloco das cantinas. © CMP


Vista parcial do bloco das cantinas. © CMP


Informações retiradas da obra O poder da arte:o estado novo e a cidade universitária de Coimbra, da autoria de Nuno Rosmaninho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006.


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