sábado, 28 de julho de 2012

Pratos - Aleluia

A fábrica de cerâmica Aleluia, em Aveiro, foi desde meados dos Anos 30 até inícios de 70, dirigida pelos dois filhos e herdeiros do seu fundador João Aleluia (1876-1935). 
Carlos e Gervásio Aleluia, dividiam responsabilidades de gestão, ocupando respectivamente os cargos de Gerente Comercial e Gerente Técnico e Artístico.
Coube a Gervásio Aleluia implementar as novidades técnicas e supervisionar a equipa criativa da fábrica, responsável pela criação de uma das mais originais e actualizadas linhas de louça decorativa do panorama produtivo nacional.
O conjunto de três pratos de vários tamanhos, abaixo reproduzido, data do início da década de 60, explorando motivos gráficos preenchidos com cores planas e contrastantes, sobre fundo negro, acompanhando as tendências do design da época.
Estes pratos circulares, com um rebordo de c.2 cm de altura, aproximam-se do formato taça. O mais pequeno, modelo 819, mede 11,8 cm de diâmetro; o de tamanho intermédio, modelo 936, mede 15 cm de diâmetro e o maior, modelo 937, mede 24 cm de diâmetro.


Aleluia - Prato 819, c. 1960. © CMP

Aleluia - Prato 819, marca de fábrica. © CMP


Os três pratos estão marcados com o carimbo da fábrica, contendo no centro a letra D escrita à mão, indicativa de que a pintura foi executada por Domingos Oliveira (n.1929), trabalhador na fábrica Aleluia entre 1943 e 1979.
Domingos Oliveira entrou ao serviço da Aleluia com c.14 anos de idade, vindo das Faianças de S. Roque, também em Aveiro, onde havia iniciado o seu percurso profissional. Tendo sido aluno de Gervásio Aleluia, na Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira, foi através dele que ingressou na fábrica, passando por vários ofícios até chegar à secção de pintura, onde obteve maior grau de especialização e permaneceu durante mais tempo.
A segurança e competência técnica do executante são bem visíveis nestas peças, pintadas sobre o vidrado, em que os elementos lineares são desenhados a pincel e esgrafitados, numa execução limpa e rigorosa. Como aliás acontece na maioria das peças de cerâmica, loiça decorativa ou não, saídas da fábrica Aleluia, resultado de uma formação cuidada e exigente, ministrada aos pintores.


Aleluia - Prato 936, c. 1960. © CMP

Aleluia - Prato 936, tardoz. © CMP

Aleluia - Prato 937, c. 1960. © CMP

Aleluia - Prato 937, tardoz. © CMP


Aleluia - Pratos 819, 936 e 937, c. 1960. © CMP


Muitos dos padrões decorativos aplicados na cerâmica das décadas de 50 e 60, derivam directamente dos padrões têxteis. 
Esta contaminação verificara-se, em sentido inverso, já no período entre as Guerras, durante o qual se produziram padrões para tecidos, criando efeitos semelhantes aos obtidos através da pintura a aerógrafo sobre stencil, usada na decoração das louças.
No final da Segunda Grande Guerra, a renovação dos padrões têxteis faz-se rapidamente, com o objectivo de aumentar a oferta, de modo a satisfazer as necessidades de um público ávido de cor e diversidade, após os anos de privação impostos pelo conflito mundial.
Os designers e artistas, absorvem as tendências da Pintura e das artes gráficas modernistas, transpondo-as para os tecidos. Desenvolvem formas abstractas, geométricas ou biomórficas, onde a linha e a mancha de cor se articulam de modos surpreendentes e dinâmicos.
Abaixo podemos ver dois esquemas de cor para o padrão Coppice, criado em 1954, pela designer britânica Mary White (n.1926), para o armazém londrino Heals.
Este desenho, aplicado num tecido de algodão próprio para decoração de interiores, baseia-se em formas de árvores e folhas, tratadas segundo um processo de abstracção.
A aproximação às formas utilizadas na decoração de peças de cerâmica, utilitária ou não, é óbvia, especialmente às formas ogivais de folha estilizada, usadas nos pratos acima referidos. Reconhece-se ainda uma relação evidente entre as formas definidas pelas manchas de cor e muitos dos formatos de vasos e jarras produzidos na mesma época.


Mary White - "Coppice", tecido de algodão, Heals, 1954.  V&A


No entanto, o padrão usado na decoração do pratos Aleluia, é directamente subsidiário de um outro, desenvolvido na Alemanha, pela Schramberger Majolika-Fabrik (SMF) no final da década de 50.
A SMF foi fundada em 1820, em Schramberg, por Isidor Faist, ainda sob a denominação de Faist'sche Steingutfabrik. Após sofrer várias reconfigurações, a fábrica é comprada pela Villeroy & Boch, em 1883. Como subsidiária da V&B, Mettlach, a empresa ganhou alguma notoriedade, tendo sido novamente vendida em 1912, aos irmãos Moritz e Leopold Meyer, pertencentes a uma família de origem judaica.
Sob a direcção dos irmãos Meyer, a fábrica assume um papel fundamental no contexto do modernismo Alemão, no período entre as Guerras. 
As influências da Bauhaus e as tendências Art Déco tornam-se dominantes, promovendo a concepção de novos formatos e padrões decorativos, dos quais se destacam especialmente os concebidos  pela designer húngara Eva Zeisel (1906-2011) (ao tempo Eva Stricker, nome do seu primeiro marido), que trabalhou na SMF entre 1928 e 1930, criando peças com formas e decorações geométricas, exibindo notórias influências da escola de Viena.
Em 1938, com as perseguições nazis e a implementação de legislação proibitiva da propriedade judaica, os irmãos Meyer vêm-se obrigados a vender a empresa e a família refugia-se no Reino Unido, regressando à Alemanha após o final da Guerra, em 1949.
Peter Meyer (1922-1980), filho de Moritz, é imediatamente autorizado a assumir a direcção da SMF, sendo o principal responsável pelo extraordinário impulso dado à produção, durante as décadas de 50 e 60.
Após a morte de Meyer, a empresa é dirigida por vários gestores, acabando por encerrar definitivamente em 1989.


SMF - Jarra, modelo 4888, 1959. Publicada em Keramik der 50er Jahare - Formen, Farben und Dekore de Horst Makus, ed. Arnoldsche, 2005.

Umas das maiores responsáveis pelo sucesso da SMF, no período após a Guerra, foi a designer Elfi Stadler (1930-1968), autora do formato de grande parte das peças produzidas pela fábrica, como é o caso da jarra modelo 4888, acima reproduzida ou do prato modelo 4985, que podemos ver abaixo.
Stadler, com formação na Escola de Artes Aplicadas de Viena, onde foi aluna de Robert Obsieger (1884-1958), trabalhou na SMF entre 1953 e 1963.
O motivo decorativo "Nairobi", usado em peças de diferentes formatos, aparece nas aqui referidas, em duas distintas variações cromáticas. Este padrão que, claramente serviu de base ao aplicado nos pratos Aleluia, foi desenhado por Ferdinand Langenbacher (1904-?), em 1959.
Langenbacher inicia o seu percurso com aprendiz na SMF, em 1918, assumindo a direcção do departamento de decoração em 1949, onde é responsável por uma profusão de padrões decorativos para cerâmica utilitária e ornamental, muitos deles alcançando enorme popularidade.



SMF - Prato, modelo 4985, 1959. © CMP


SMF - Prato, modelo 4985, detalhe, 1959. © CMP


Apesar da sua maior escala, 26,5 cm de diâmetro, neste prato da SMF, a qualidade técnica da pintura fica bastante aquém da que se encontra nos pratos Aleluia. Aqui, a aplicação das cores é bastante manchada e irregular, sublinhando a falta de rigor do desenho, cuja assimetria não se deve a intenções expressivas, mas antes ao desleixo da execução.


SMF - Prato, modelo 4985, marca de fábrica. © CMP


O padrão "Nairobi", como o nome indica, explora as influências primitivas africanas, tão em voga na época.
A SMF produziu muitas outras decorações evocativas do exotismo dos trópicos, como por exemplo os padrões "Hawaii" (1954), "Java"(1955)", "Zebra" (1955), "Ceylon" (1955-57) ou "Brazil" (1957/58).
O desenho toma a designação da capital do Quénia, fazendo uso estilizado das formas dos escudos Masai, população tribal habitante deste país e do norte da Tanzânia.
Tal como nas decorações dos citados escudos, o padrão desenvolve uma linguagem abstracta e sintética, onde não cabe a representação do real, podendo também remeter para formas vegetais, como folhas ou outros elementos naturais.


Escudos Masai, Quénia.

É ainda de notar, que os exotismos africanos presentes nas artes decorativas ocidentais, do pós-Guerra, são contemporâneos do nascimento de muitos dos movimentos independentistas da África colonizada. Contribuindo assim para perpetuar na Europa uma imagem idílica, de crença no progresso das colónias, contraditória às realidades aí vividas.
Quando em 1963, após longos anos de guerra, o Quénia se torna uma república independente, adopta uma nova bandeira, até hoje em vigor, cujo motivo central é o escudo Masai, símbolo nacional. 
Tal como outras bandeiras de países africanos, concebidas na década de 60, utiliza elementos tribais, como fundamento identitário, pondo de lado o legado de longos anos de colonização.
O retorno às origens, preconizado pela recuperação das linguagens primitivas, nos movimentos artísticos do pós-Guerra, vê assim correspondência numa realidade histórica em formação. Os estados africanos, em plena reconfiguração, procuram no primitivismo uma identidade perdida nos tempos, anterior à chegada dos colonos europeus.


Bandeira do Quénia, adoptada em Dezembro de 1963.