segunda-feira, 29 de julho de 2013

Maria Keil - Duas mostras, 1955 e 2013

Maria Keil (1914-2012) a mais multifacetada artista do Modernismo em Portugal, vê finalmente a sua obra exposta de modo abrangente, ainda que não exaustivo, na mostra "De propósito, Maria Keil, Obra Artística".
A selecção de trabalhos inclui peças representativas das múltiplas áreas disciplinares exploradas pela artista: pintura; ilustração; azulejo; cenografia e figurinos; design gráfico; publicidade; mobiliário; decoração e tapeçaria mural. Sempre sob o signo do Desenho, disciplina orientadora de toda a produção artística da autora.
Desta exposição fica ainda a promessa da publicação de um catálogo raisonné, a sair até final de 2013, contribuição fundamental para a sistematização da surpreendente diversidade de uma obra profícua e multidisciplinar.
As imagens aqui apresentadas registam algumas das peças expostas, aproveitando para evocar outro momento expositivo, o primeiro dedicado pela artista inteiramente às artes decorativas. Decorreu na Galeria Pórtico, em Lisboa, de Maio a Junho de 1955, dando visibilidade à obra azulejar em desenvolvimento, que viria  mais tarde a culminar  nos painéis de grande escala para o Metropolitano de Lisboa.



Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, 102x171 cm, 1955, colecção particular. © CMP



A Galeria Pórtico abre, na Rua da Misericórdia 33, em 1955, ano precedente à última (X) Exposição Geral de Artes Plásticas e à criação da Fundação Calouste Gulbenkian, início de um novo ciclo na história da arte em Portugal.
Logo no ano de abertura mostra obras de Fernando Lemos (n.1926), Vespeira (1925-2002), Manuel Cargaleiro (n.1927), Valadas Coriel (n.1928), Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), para além de Maria Keil, acima citada, realizando ainda exposições de gravura e de carácter didáctico.
Desempenhou um papel importante na divulgação de uma nova geração de artistas, então ainda estudantes de Belas-Artes, René Bertholo (1935-2005), Lourdes Castro (n.1930), José Escada (1934-1980) e Costa Pinheiro (n.1932), todos eles aí expondo, individual ou colectivamente entre 55 e 57. Este grupo será mais tarde, já em Paris, responsável pela criação da revista KWY (1958-1964).
A Pórtico promoveria ainda, em 57, a exibição de obras de Vieira da Silva (1908-1992), último ano em que manterá programação regular, acabando por encerrar em 1959.

 

Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP


Maria Keil, teve obra pictórica apreendida pela PIDE na II Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1947, juntamente com Júlio Pomar (n.1926), Rui Pimentel (Arco) (n.1924) e Manuel Ribeiro de Pavia (1910-1957), dedicando-se no ano seguinte à decoração de interiores da Pousada de S. Lourenço, na Serra da Estrela, projectada pelo arquitecto Rogério de Azevedo (1898-1983), desenhando mobiliário, actividade que vinha desenvolvendo desde meados da década de 40, tanto para encomendas públicas como privadas, muitas vezes em colaboração com o seu marido, o arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-1975).
A exposição na Pórtico, "Móveis de Maria Keil e Manuel Magalhães - Azulejos de Maria Keil", representa assim o amadurecer de um percurso de vários anos de actividade. Aliando às peças por si desenhadas e realizadas pelo mestre entalhador Manuel Magalhães, azulejos executados na fábrica Viúva Lamego, tanto em painéis como integrados em mobiliário.


Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP


Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Combate de Galos, painel de azulejos, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP


Um dos exemplares mostrados em 1955 é o painel Combate de Galos, acima reproduzido, onde a espessa linha que define o desenho dos animais é esgrafitada sobre um fundo padronado, criando um efeito semelhante à técnica de corda-seca, mais tarde aplicada por Keil nos revestimentos da estação Rossio, do Metropolitano de Lisboa. Técnica semelhante foi utilizada no painel Os Papagaios, igualmente exposto em 55.
Este desenho, dinâmico e abstractizante, demonstra uma particular eficiência gráfica, sublinhada pela repetição de um módulo de desenho linear, tendo por base os alvéolos da rede de capoeira.
Esta abordagem, distancia-se claramente do registo ilustrativo, trabalhado com bastante à-vontade pela artista, em inúmeros livros infantis e escolares, como podemos verificar pelos estudos abaixo reproduzidos, de temática semelhante.



Maria Keil - estudo para ilustração do livro Histórias da Minha Rua, guache e tinta-da-china sobre papel, 1953, colecção da BNP. © CMP

Maria Keil - estudos para ilustração do livro O pau-de-fileira, tinta-da-china, grafite e guache, 1977, colecção da BNP. © CMP

Na exposição na Pórtico, foram mostrados dezasseis painéis de azulejo, incluindo excertos de revestimentos de parede, entretanto concebidos pela artista. Entre estes constava o painel Os Pastores, já aqui referido, a propósito da estação de Metro, Parque.
Abaixo podemos ver um projecto para um dos painéis apresentados, A Figueira, e um detalhe do projecto para uma parede na sede da TAP em Paris, da qual foi exibido um excerto, tal como aconteceu com a parede desenhada para a Aerogare de Luanda, realizada em 1954.


Maria Keil - estudo para painel de azulejos A Figueira, lápis sobre papel vegetal, 1955, colecção do MNAZ. © CMP

Maria Keil - painel de azulejos A Figueira, 1955, colecção particular. Imagem publicada no catálogo Maria Keil - Azulejos, edição do Museu Nacional do Azulejo, 1989.

Maria Keil - detalhe de painel de azulejos Rapariga da Fruta, 1955. Imagem publicada na revista Panorama, nº3, 1956, divulgando a exposição na galeria Pórtico, Lisboa.


Sobre os azulejos expostos, escreve Maria Keil, no catálogo de 1955, um texto exemplar que poderá ser entendido como manifesto da modernização da produção azulejar em Portugal: 
"Poucas artes aplicadas têm tradições tão portuguesas como a dos azulejos de revestimento e pouquíssimas contribuíram tanto para o que há de característico nas nossas edificações dos últimos séculos. E, no entanto, mercê de circunstâncias mal definidas, essa tradição magnífica quase se perdeu. Vem vegetando na execução de pequenos painéis com santos do mesmo nome dos donos de quintas e de casais, ou na repetição de motivos «à antiga portuguesa».
Parece-me que vale a pena, a vários títulos, insuflar vida nessa tradição decadente e que aos arquitectos cabe, necessariamente, um papel importante nessa tarefa: porque se não derem guarida aos azulejos nas suas obras, nada feito. Mas a nós, pintores e decoradores, cumpre fornecer aos arquitectos azulejos adequados para os edifícios e as soluções de hoje. Azulejos de espírito moderno para as obras de arquitectura moderna.
Na tradição do azulejo português há duas feições dominantes: a dos motivos pintados à mão, com um número de cores bastante reduzido, em que predomina o azul; e a dos elementos estampilhados em série, que se empregou, principalmente, para revestir fachadas de prédios e grandes superfícies interiores. Nessa tradição limitada, mas rica de possibilidades para quem tiver imaginação, procurei lançar as minhas raízes. Ela continua a ser, quanto a mim, perfeitamente adequada para valorizar a arquitectura. Para valorizar integrando-se nela discretamente, como é preciso.
Não permite, é certo, os requintes da cerâmica policromada, nem é rico e quente (bem pelo contrário) o material visto ao pé. Mas, assim mesmo, conseguiram os nossos maiores realizar coisas tão belas, tão certas para os locais e as funções a que se destinavam, tão simples, tão humildes, tão bem compreendidas, que me parece impensada vaidade desprezar a lição magnífica que encerram.
As minhas obras são apenas ensaios, tentativas, que a boa-vontade e simpatia dos que dirigem e dos que trabalham na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego tornou possível, com os seus ensinamentos e a sua ajuda. São, na maioria dos casos, troços de grandes superfícies já revestidas, ou a revestir. E como tal gostaria que fossem olhadas.



Maria Keil - detalhe do estudo para parede em azulejos na sede da TAP em Paris, tinta-da-china, guache e colagem sobre cartão, 1954, colecção particular. © CMP


Foram também mostradas peças de mobiliário integrando azulejo, como é o caso da Mesa dos Frutos, abaixo reproduzida, cujo tampo é composto por dezasseis azulejos. O motivo central combina pintura com desenho esgrafitado e a cercadura é composta por um conjunto de motivos avulso, figurando vários frutos, em tonalidades de verde e azul, envoltos num grafismo dinâmico, elemento agregador da composição.


Maria Keil - Mesa dos Frutos, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Mesa dos Frutos, tampo, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Mesa dos Frutos, detalhe do motivo central do tampo, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Mesa dos Frutos, detalhe da cercadura do tampo, 1955, colecção particular. © CMP


A complexidade das peças de mobiliário expostas na Pórtico, afasta-se do trabalho desenvolvido, anos antes, para a Pousada de Manteigas, revelando uma maior sofisticação, tanto estrutural, como técnica. 
É um mobiliário de concepção moderna, longe da estilização folclórica proposta anos antes segundo os ditames da Campanha do Bom Gosto do SPN. Conjuga a utilização de vários materiais, como madeiras ou metais, onde o detalhe minucioso, não é rústico, nem é barroco, revelando um alinhamento pelas tendências internacionais, especialmente o desenho de mobiliário italiano, associado a uma primorosa execução técnica.



Maria Keil - Bar dos Cavalos, 1955, colecção particular. © CMP

Sobre as suas propostas de mobiliário diz a autora, no catálogo supracitado:
"Quanto à feição que pretendi imprimir-lhes, estes móveis constituem uma tentativa de resposta às seguintes perguntas que a mim mesma vinha fazendo com crescente frequência:
- Será que estamos realmente condenados, em Portugal, a recorrer às imitações pomposas de móveis antigos sempre que pretendemos arranjar uma casa nova com certa distinção, ou riqueza?
- Não haverá outro, ou outros caminhos? Não será possível fazer móveis de hoje, simples, mas enobrecidos e enriquecidos pela intervenção de artistas plásticos?
É certo que a feição característica do mobiliário contemporâneo é acentuadamente utilitária, com grande sobriedade de linhas e de volumes. É certo ainda que as vantagens resultantes do emprego de novas técnicas de produção em série devem colocar ao alcance do homem comum móveis de preço acessível, mas com modelos estudados cuidadosamente por especialistas de elevada categoria.
Contudo, creio bem que a par desses móveis (raríssimos ainda entre nós, infelizmente) há lugar para esse outro tipo de mobiliário cuja falta sinto - sóbrio e funcional mas valorizado pelo poder criador e pelo trabalho de artistas e artífices.
Os motivos de talha, de embutidos e de metais são, porventura, os mais constantes na tradição do mobiliário. E foi nessa tradição que lancei raízes. Variando mais uma vez o estilo do conjunto e dos motivos ornamentais, como era natural, mas procurando beneficiar dos ensinamentos da Tradição e respeitá-la no que ela tem de vivo e respeitável.
As peças expostas estudei-as e desenhei-as com a atenção que se dedica a uma esperança. Isso, porém, não seria bastante. Porque os móveis de arte têm que ser executados por quem os compreenda e sinta. De nada serviria ter concebido e desenhado as figurinhas para fazer em talha se não encontrasse quem as realizasse convenientemente. Neste ponto, porém, a Sorte acompanhou-me: o senhor Manuel Magalhães é um mestre entalhador de grandes recursos técnicos e de apurada sensibilidade. Com um carinho, uma perícia e uma compreensão invulgares soube transformar os meus desenhos a duas dimensões em pequenas esculturas. A ele se deve, portanto, muito do que possam valer as peças expostas."


Maria Keil - Papeleira dos Meninos e da Água, 1955, colecção particular. © CMP



Maria Keil - Papeleira dos Meninos e da Água, detalhe, 1955, colecção particular. © CMP


Para além dos exemplares referidos, estiveram ainda expostos na Pórtico, segundo o catálogo:
- Mesa dos Cavalos
- Armário dos Camponeses
- Papeleira dos Pescadores
- Móvel da Fonte


 




A exposição "De propósito, Maria Keil, Obra Artística", está patente no Palácio da Cidadela de Cascais, de 10 de Julho a 27 de Outubro, do ano corrente. É organizada pelo Museu da Presidência da República, sob a coordenação de Diogo Gaspar e tem curadoria de Alexandre Arménio Tojal e Rui Manuel Almeida.



terça-feira, 2 de julho de 2013

Luiz Pacheco - "O Caso Ferreira da Silva"

No seguimento da anterior publicação Luiz Pacheco entrevista Luís Ferreira da Silva, reproduzimos agora o texto do mesmo autor, “O Caso Ferreira da Silva”.
Retomando antigas inquietações, Luiz Pacheco faz publicar este escrito de intervenção no folheto de título genérico "Maravilhas & Maravalhas Caldenses", em Outubro de 1966, anunciado como o primeiro de uma série. Este documento de dezoito páginas, impressas em stencil e  agrafadas, com tiragem de 100 exemplares numerados e assinados pelo editor, continha ainda uma carta ao ministro da Saúde e Assistência denunciando as debilidades da assistência materno-infantil nas Caldas da Rainha e o texto "Memorial, Na Morte de António Pedro". 
A publicação vem na sequência de outras anteriores, assinadas Delfim da Costa o Cangalheiro da Cidade, pseudónimo que servia de abrigo a vários autores. O escritor editava e vendia estes cadernos como fonte imediata de receitas, mas sobretudo pretendendo abalar o meio cultural e literário estabelecido, com conteúdos muitas vezes satíricos e de crítica de costumes.
O folheto imediatamente precedente, redigido apenas por Pacheco, foi lançado em Setembro de 1965, também nas Caldas da Rainha. Uma folha A3, dobrada em quatro, com o título "O Prato do Diabo. 30 Coplas de pé quebrado compostas e musicadas cantadas por Delfim da Costa, o Cangalheiro da Cidade". Essas coplas visavam os poetas sadinos, o filósofo António Quadros e o pintor Figueiredo Sobral (1926-2010), ridicularizado por Pacheco em várias ocasiões, após uma exposição de obras suas no Café Central, no Verão de 1965. Nestas quadras profere já elogiosa referência à produção da SECLA, a 'casa' de Ferreira da Silva:


(...)
Os que são de Arte ilustrados
Preferem uma outra tecla
Compram os barros assados
Na padaria da Secla. 
(...)



Conjunto de peças da autoria de Ferreira da Silva, SECLA, Anos 50 a 60. Colecção Jorge Ferreira, Caldas da Rainha. © CMP



Embora "O Caso Ferreira da Silva" se reporte à situação concreta do ceramista, aquando da atribuição, pela Fundação Calouste Gulbenkian,  de uma bolsa de estudo que permitirá a sua permanência em Paris, durante o ano seguinte, ele constitui sobretudo mais um documento de denúncia, entre os muitos produzidos por Pacheco, sobre a condição do artista (plástico ou literário) em Portugal, dos quais o mais lapidar seria "O Cachecol do Artista", que havia escrito sobre si próprio.


Luiz Pacheco, na Praça da República (também conhecida por 'Praça da Fruta') e no Casal da Rochida, Caldas da Rainha, c.1965.

Demonstrando genuína  preocupação com a situação de um amigo, Luiz Pacheco não deixa de tecer aguçada crítica ao modo com este se deixa tomar pelas circunstâncias, não permitindo que elas se alterem. Em carta dirigida a Jaime Salazar Sampaio (1925-2010), datada de 28 de Maio de 1966, Pacheco afirma sobre Ferreira da Silva: "ceramista dos melhores, dizem, que já duvido de tudo. Travei com este tipo, durante mais de um ano, aquele nosso conhecido combate: não te deixes ir abaixo! Faze o teu melhor! Luta pela tua Arte! Então esse orgulho?" Explica ainda que o artista teria acabado de perder, pela terceira vez, a bolsa da Gulbenkian e que recebera o Prémio Soares dos Reis do SNI, embora lhe tivesse afirmado que o recusara. "Falava-me numa homenagem a Espártaco em barro da Secla e o que faz é dançar o yé-yé. Coisa e outra, grandes dissabores ao procurar desviá-lo das meadas em que se debate!"


Ferreira da Silva, O Escriba (retrato de Luiz Pacheco), monotipia, Bombarral, 1966. Colecção do Partido Comunista Português (doação do escritor).

Luiz Pacheco resolve então tornar público este 'combate', editando "O Caso Ferreira da Silva":

"Uma cidade de passagem, sem vida cultural própria; um patronato guloso das horas, da imaginação criadora de quem o serve, e enredado, estandardizado no afã comercialista rotineiro; uma mulher limitada porém humaníssima nos seus anseios e reacções de fêmea, de mãe. Registo: uma esposa portuguesa, patrões egoístas portugueses, uma cidade pequenina e portuguesa conspiram, talvez inconscientemente, cada qual para seu lado, numa acção desconcertada mas não menos eficaz, não menos perigosa para a vítima; parecem todos apostados em; ou podem vir a estar em vias de DESTRUIR UM ARTISTA.
Como é de Caldas da Rainha que falo, era escusado dizer-lhe o nome, tão conhecido ele é. E não só nas Caldas, e não só no País inteiro (Prémio Soares dos Reis da Escultura, obtido em 1964 no Salão da Primavera da S.N.B.A.) mas internacionalmente. Um Artista português com audiência, com clientela internacional. ‘tá-qui diante de mim um papelinho impresso, dum senhoreco americano, Mister George H. Frost, de Nova-Iorque, bem explícito a tal respeito. Diz assim: “Unique studio pieces: each an original signed work of art. Pots, plaques, jars, jugs, bowls or purely imaginative creations; suitable for lamps, flower arrangements, etc., or to stand alone like fine statuary just for looking at and enjoying. Gay, witty, colorful, they are mostly the production of the portuguese ceramist, Ferreira da Silva”.



Publicidade às peças de Ferreira da Silva importadas para os EUA por George H. Frost, Frost Ceramic Imports, na publicação Building Products Guide for Interior Design and Decorating, 1960. Imagem publicada em A Nova Cerâmica da Caldas, da autoria de Alberto Pinto Ribeiro, 1989.


Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, c.65 cm de altura, SECLA, década de 1960. Colecção do Museu da Cerâmica, Caldas da Rainha. © CMP



Mas este será, vamos! o ponto de vista do importador, de um Marchand que de tolo pouco tenha. E a crítica? Leia-se o nº37, Junho de 1962, da revista francesa Aujourd’hui, de Arte e Arquitectura, a pág. 55, numa nótula à II Exposição Gulbenkian, efectuada em Lisboa. Começa assim: “L’art portugais est à peu près inconnu à l’étranger. Les représentations officielles aux grandes biennales sont délaissées par la presque totalité des artistes portugais valables, les échanges culturels sont nuls et le Marché inexistant; on reste là-bas pratiquement coupé de la vie artistique internationale”. A entrada é desanimadora, mas passados 4 anos já, por certo, não se comprova pelos factos. Mas tenham a bondade de ler o último parágrafo da dita nótula: “Si les gravures exposées font état d’um mouvemente national assez intéressant (Cid, Charrua, Pomar), il n’en va pas de même avec la sculture oú, parmi de piètres oeuvres démodées (celles de Rocha, Cutileiro e Pomar mises à part) on ne saurait remarquer que l’inconformisme criant de Ferreira da Silva, par qui le scandale arriva à Lisbonne...” Assinado: J.A. França.



Capa da revista francesa Aujourd'Hui art et architecture, nº37, 1962.


Ferreira da Silva e escultura em ferro, exterior da SECLA, c.1966. Imagem publicada no Suplemento da Gazeta das Caldas dedicado a Ferreira da Silva, 28 de Dezembro de 2001.


Ferreira da Silva - Escultura de parede, ferro. Colecção Jorge Ferreira, Caldas da Rainha. © CMP



Ora esse é o drama actual (o talento por si só vale muito, mas se não zelarem por ele estiola) de Ferreira da Silva.
Conheço-o bem, a ele e ao seu drama. Há perto de dois anos, numa amizade atenta, numa camaradagem em que não lhe regateei louvores e apoios, mas soube ser também brusco e leal nos reparos, tive tempo de sobra para estudar e definir o seu tipo bastante singular. Dum ponto de vista estético, nele se congregam o artífice de vasta experiência com as características que marcam o Artista criador: carga instintiva, imaginação e, até, pendor humanista, porque é um revoltado de classe, um inconformista por temperamento. À humildade do artesão (é vê-lo na sua oficina da Secla, como reparei e sublinhei numa entrevista publicada no Jornal de Letras e Artes) alia-se o orgulho, a imponente, espectacular arrogância do Artista (é vê-lo cá fora na Praça, e isso Caldas inteira reparou já; é ouvi-lo como ataca, irado, as vaidadezinhas dos amadores, só simpáticos na sua pertinácia e, vá lá, úteis como público mais esclarecido num meio restrito como é o caldense).
Encaminhado desde muito novo para a vida artística, F.S. percorreu no campo da escultura, da cerâmica e também da gravura, desenho, pintura, todos os graus, cumpriu todas as tarefas, até atingir a posição de que hoje desfruta. É um profissional. Um mestre, principalmente em escultura e cerâmica. Quem sou eu, que percebo eu disso para o dizer? Mas di-lo (por exemplo) o Areal, o Nelson di Maggio, o Figueiredo Sobral. Repetiu-mo há dias a Clara de Oliveira que por duas vezes veio às Caldas aprender cerâmica com ele. Dizem-no, com a sua responsabilidade, os membros do júri da Fundação Gulbenkian que lhe atribuíram a bolsa, sem que o F.S. tenha nada do insistente maçador que não larga a Gulbenkian. Escreveu-lho o Sèlles Paez. Sabem-no todos os seus camaradas da Secla.



Ferreira da Silva, SECLA, c.1965. Imagem publicada no catálogo Estúdio SECLA - Uma Renovação na Cerâmica Portuguesa, edição do Museu Nacional do Azulejo, 1999.


Eu nem sei se os Caldenses já repararam bem, mas devem a este rapaz uma nova visão. Na verdade, vou a casa de um Amigo, a um consultório, visito um Mecenas e, de repente, estamos envolvidos numa atmosfera F.S., isto é, num mundo de formas e cor que o F.S. criou e é inconfundível. Aquele painel na Tertúlia, o belo mural em casa do Vítor Sebastião, o Ferro-velho do Vasco Luís (autêntico Museu F.S.), as esculturas e decorações do Inferno d’Azenha seriam, serão um dia lugar de romagem para turistas, a haver nesta terrinha um pouco de amor pelas coisas de cá, um serviço turístico a sério.



Fachada do Inferno d'Azenha, Caldas da Rainha. Fotografia © Margarida Araújo.


Inferno d'Azenha, Caldas da Rainha. Fotografia © Margarida Araújo. 


Ferreira da Silva - escultura em ferro, Inferno d'Azenha, Caldas da Rainha. Fotografia © Margarida Araújo.


Ferreira da Silva - placa cerâmica, Inferno d'Azenha, Caldas da Rainha. Fotografia © Margarida Araújo.



(...) Não lhe regateemos louvores, nem o poupemos em nossas críticas. Pergunta directa: como é que um Artista assim dotado pela Natureza e experimentado numa técnica, cuja bagagem cultural decerto não é tão extensa como seria de lhe exigir mas é muito mais vasta (e intensa, já que se trata de um instintivo, um sensual) do que ele aparenta; como é que um consagrado, já laureado, possuindo clientela e admiradores entre peritos, está em riscos de perecer (como Artista, bem entendido)? Isso é outra história, outra verdade. Na citada entrevista, Clara de Oliveira afirmou-me: “A Arte de F.S. não evoluiu nada de há um ano para cá”. Pode objectar-se que um ano, na vida de um Artista, conta pouco. Outrossim, poderá perguntar-se é se a criação do F.S. teria condições de evoluir, aqui, nesta encantadora pequena cidade de província, onde vale a pena vir só pelos pêcegos enormes... e aqui é que bate o ponto e somos todos aqui cúmplices ou culpados cada qual à sua escala nesta não-evolução. Caldas é um meio privilegiado para a criação artística, mas tanta facilidade conduz à dolce vita, ao farniente. Ao optimismo. E este, ao deixa andar, à repetição, à glóriola local que localmente se contenta. O mais precavido cai nisso. A tendência geral é para o nivelamento. Assim, meios esteticamente avançados, onde a competição é árdua, produzem artistas superiores; em meios de débil exigência, de vida fácil, os artistas são sugados para a facilidade, a não exigência consigo próprios. Falhos de convivência, de estímulo esclarecido, de público, em suma, tendem para o narcisismo, para a mitomania.
São palavras duras de ouvir?
A mim próprio as digo muitas vezes. No caso de Ferreira da Silva sabem-no muitos que não exagero. Que ele está nas melhores condições (de idade, de vigor oficinal, de ambições, de possibilidades materiais) de levar para a frente a sua criação. Dispõe de uma bolsa para se especializar em Paris. Façamos-lhe então uma homenagem pública e um favor pessoal que em nosso proveito reverterá (porque o que faz um Artista interessa a todos): incitemo-lo. Não o desviemos da sua carreira. Acreditemos nele e nela. O companheirismo fácil é cómodo. A convivência exige a lealdade. O caso (artístico) F.S. não está encerrado. Talvez, quem sabe?, vá entrar numa fase decisiva. Não estou, ninguém nas Caldas deve ficar, indiferente à sua personalidade como à sua obra futura."


Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, 71,5 x 41 x 18 cm, SECLA, década de 1960. Colecção do Museu da Cerâmica, Caldas da Rainha. © CMP




Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, 71,5 x 41 x 18 cm, SECLA, década de1960. Colecção do Museu da Cerâmica, Caldas da Rainha. © CMP



Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, detalhe, SECLA, década de 1960. Colecção do Museu da Cerâmica, Caldas da Rainha. © CMP



Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, c.75 cm de altura, SECLA, década de 1960. Colecção Jorge Ferreira, Caldas da Rainha. © CMP


Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, detalhe, SECLA, década de 1960. Colecção Jorge Ferreira, Caldas da Rainha. © CMP


Ferreira da Silva - Garrafa decorativa, detalhe, SECLA, década de 1960. Colecção Jorge Ferreira, Caldas da Rainha. © CMP



Em 1967, Ferreira da Silva vai finalmente para Paris com bolsa da Fundação Gulbenkian. Ao deslumbramento cultural causado pela sua primeira saída do país, vem juntar-se a forte impressão causada pela entrada em ebulição do Maio de 68, que o marcará indelevelmente.
Desenvolve práticas de cerâmica e escultura na Academie de Paris - École Métiers d'Art (ENSAAMA), onde trabalha ainda técnicas como o vitral, o estafe ou a tapeçaria. Integra-se na diversidade de nacionalidades dos alunos que frequentavam a escola, como explica em entrevista à Gazeta das Caldas, Dezembro de 2001: "Já levava um conhecimento bom de cá que me dava a possibilidade de trabalhar com os professores e outros artistas. (...) Ainda hoje a minha formação continua agarrada a esses tempos."
A experiência parisiense não terá sido especialmente profícua em trabalho cerâmico. Embora em França, a cerâmica tivesse conhecido um enorme incremento após a II Guerra, com vários ceramistas vindos de Paris a estabelecerem-se no Sul, na região de Vallauris, as experiências desenvolvidas por Picasso na Madoura ou a obra de referência de George Jouve (1910-1964), este era um fenómeno aparentemente pouco absorvido pelos meios académicos. Assim, Ferreira da Silva parece não ter tido a oportunidade de prosseguir o experimentalismo que caracterizava o seu trabalho precedente, regressando a Portugal em Junho de 1968, com Maio ainda vivo na memória, pronto a operar uma viragem estética na sua produção cerâmica.  


Ferreira da Silva, Estúdio SECLA, 1968. Imagem publicada no Suplemento da Gazeta das Caldas dedicado a Ferreira da Silva, 28 de Dezembro de 2001.


Ferreira da Silva - placa cerâmica, SECLA, c.1969. Fotografia © Margarida Araújo.




Ver também:
Placas cerâmicas - Ferreira da Silva - SECLA
Candeeiro - Ferreira da Silva - SECLA



CMP* agradece ao coleccionador Jorge Ferreira e à fotografa e investigadora Margarida Araújo, pelas suas valiosas contribuições.


Nota: Transcrições de "O Caso Ferreira da Silva" e excertos de cartas, feitas a partir do suplemento da Gazeta das Caldas, de 11 de Janeiro de 2008, publicado aquando da morte de Luiz Pacheco. Imagens e informações adicionais retiradas do suplemento do mesmo jornal, dedicado a Ferreira da Silva, de 28 de Dezembro de 2001. Outras informações retiradas de: George, João Pedro - Puta que os Pariu!: A Biografia de Luiz Pacheco. Lisboa: Tinta da China, 2011.